quinta-feira, abril 18 2024

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Já na primeiríssima sequência, quando a câmera lentamente revela uma imagem triplicada de um personagem, sabemos que não será de falta de elegância e encenação que Ponte dos Espiões sofrerá. Afinal, é o novo filme de Steven Spielberg, cujo domínio do cinema narrativo dispensa apresentações e que tem seguido uma inspiração mais clássica em seus últimos filmes. O que vemos logo nos primeiros dez minutos – uma excelente perseguição sem diálogos – mostra que uma trama envolvendo espiões no período da Guerra Fria parece ideal para o cineasta nesta sua fase.

Curiosamente não é pelo thriller de espionagem que Spielberg vai se enveredar. Ponte dos Espiões é baseado na história real de um advogado (Tom Hanks) que, no final dos anos 50, é encarregado de fazer a defesa de um provável espião russo (Mark Rylance). O espião é um senhor de meia idade nada ameaçador, enquanto o advogado é um homem de família comum que, quando se vê perseguido, tenta se esconder de forma patética. A grandiosidade da ação e das intrigas é substituída pela grandiosidade dos gestos: Spielberg continua em sua fase “classicista”, claramente filiado ao cinema de John Ford (como já muito visto em Lincoln) e Frank Capra, pois estamos diante de homens nobres, que lutam pelo que acreditam dentro de um sistema falho que lhes pedem o contrário (Hanks é a escalação ideal para o protagonista, o mais próximo que o cinema americano tem hoje de um James Stewart ou Henry Fonda), cuja nobreza e seus conflitos são sempre ressaltados pelo enquadramento e a posição da câmera e, claro, um maior cuidado com a composição da luz e do quadro, mais um belo trabalho da habitual parceria entre o cineasta e o fotógrafo Janusz Kaminski.

Esse interesse pelo homem moral fica claro ainda na primeira parte do filme quando Spielberg, além da aventura de espiões, nos nega também o “drama de tribunal”, ao cortar o momento do julgamento para crianças em sala de aula jurando a bandeira, uma transição muito forte e cheia de significado: um processo meramente burocrático e de manutenção de aparências (o mundo precisa ver que os EUA tratam todos com justiça) interrompido e associado diretamente a uma doutrinação fundada na obediência e no medo (o que se segue são “aulas” de como se preparar para um ataque nuclear). Mas é uma crítica menos do modo de vida americano do que da deturpação de valores que fundaram essa sociedade, pois ser um cidadão americano, nas palavras do próprio protagonista, é seguir a Constituição. O filme sustenta muito bem essa moralidade de seus personagens (o espião russo é admirado pelo advogado justamente por ser fiel aos princípios de seu país), não apenas por ser visualmente expressivo, mas pelos ótimos diálogos, inteligentes e bem humorados, entregues com a calma e paciência cada vez mais incomuns hoje em dia. O oposto de um Aaron Sorkin, digamos.

Infelizmente, o filme sofre um pouco com sua estrutura e a incapacidade de criar personagens coadjuvantes de interesse. E há muitos deles, que parecem ameaçar ir a algum lugar (a filha do protagonista ou seu assistente, por exemplo), mas são abandonados pelo caminho. Até o piloto vivido por Austin Stowell, que tem uma elegante entrada em cena através de uma fusão que o contrapõe ao personagem de Rylance, torna-se apenas um mero pretexto para o drama. A montagem paralela com sua trama parece apenas a opção escolhida que seria menos danosa ao ritmo do filme, mas ao menos nos dá um grande momento na queda de um avião.

Tudo gira em torno do personagem de Hanks, é verdade, mas a força dos momentos que ele tem com o espião na primeira metade faz falta não só pela ausência de Rylance, mas porque ninguém mais no filme chega a ter tal ressonância. Há algumas figuras excêntricas quando o protagonista atravessa o mundo na segunda metade do filme, o que gera alguma diversão extra (provavelmente a maior contribuição dos irmãos Coen na escrita do roteiro), mas este é o momento também que Spielberg começa a derrapar no sentimentalismo: filmar homens de moral não é o mesmo que ser moralista, mas é o que acontece gradativamente quando a missão coloca Hanks em contato com uma realidade que não é a sua. Não é nada muito grave (embora uma associação entre coisas que ele vê pela janela de um trem, em Berlim e em casa, talvez seja um pouco grosseira), mas dilui a força que o filme tinha. Mesmo a beleza plástica se torna tão pouco sutil que é de se perguntar se já não estava chegando a um ponto de estilização em que a técnica chamava mais atenção para si do que para o drama narrado.

De qualquer forma, o saldo final é positivo. Há cartelas explicativas, no início e no fim; há uns leves escorregões no pieguismo; e até representações que podem causar polêmica (embora haja crítica à hipocrisia da Justiça americana, é bom lembrar que apenas o refém americano sofre algum tipo de tortura). Mas é um filme também rico em detalhes (a gripe e o uso do lenço pelos personagens de Hanks e Rylance), bonito de se ver e ouvir (“Você não está preocupado?” “Isso ajudaria?”) e muito consistente durante boa parte da projeção.

4star

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