quinta-feira, abril 25 2024

[crítica com spoilers, leia as impressões iniciais sem spoilers aqui]

Eu gosto muito de DemolidorJessica JonesLuke Cage e o universo televisivo estabelecido pela Marvel e Netflix dentro do MCU é rico e promissor. Inusitado no mínimo, então, que a a melhor produção desta parceria seja uma que não fora inicialmente planejada e que mal contém referências às demais. O Justiceiro, tal qual seu protagonista, é uma série solo (ela pode ser assistida por quem não viu nenhuma outra sem problemas), diferente das anteriores e situada bem longe de super poderes, Tentáculo, Madame Gao, K’um L’um e punhos que brilham.

Ela começa com um ritmo menos intenso, mas à medida em que avança ela atinge níveis absurdos de ação e tensão. Confesso que devorei os 13 episódios que compõem esta primeira temporada com a mesma voracidade que Frank Castle destroça seus inimigos, algo que não fiz com as anteriores (e não faço há muito tempo, virando até 5 da manhã). Aliás, nem sei se podemos chamar esta de uma “série de herói”, pois o personagem interpretado de forma visceral pelo excelente Jon Bernthal passa longe de ser um “mocinho”, como bem sabemos desde os quadrinhos e, mais recente, na segunda temporada da série do Homem sem Medo.

Na trama, encontramos Castle, agora vivendo como Pete Casteglione, seis meses após os eventos de Demolidor. Ele caçou e matou os responsáveis diretos pela morte de sua família, mas a dor e o peso da perda o corroem profundamente. Resignado a uma rotina solitária no ramo da construção, ele é chamado de volta à ação graças ao contato que recebe de Micro (o ótimo Eban Moss-Bachrach, Girls), um ex-agente da NSA que tentou expor um grande esquema de tráfico de drogas internacional utilizando a guerra no Afeganistão e acabou virando um homem procurado que teve que se exilar de sua família e da sociedade.

Juntos, mas não antes de muito conflito, Castle encontra em Micro uma segunda chance de fazer o certo por linhas tortíssimas, já que pode auxiliar o novo “colega” a recuperar aquilo que um dia perdeu. Perseguidos pela competente e destemida agente do departamento de Segurança Nacional Dinah Madani (Amber Rose Revah, Emerald City), os dois precisam descobrir os verdadeiros responsáveis pela conspiração e conseguir um salvo conduto de volta ao mundo.

O Justiceiro é uma série crescente e eficiente em seu desenvolvimento, nunca trazendo episódios fillers em que o espectador praticamente precisa ficar esperando algo acontecer (o que é comum nas outras produções). Aqui não. Cada episódio traz, além de sequências de ação empolgantes (e violentíssimas), eventos que sempre impulsionam a história pra frente. É certo que a série se beneficiaria muito mais se tivesse menos capítulos (entre oito e dez seria o ideal), mas mesmo assim ela encontra formas narrativas bastante interessantes e subversivas para preencher necessários espaços, inclusive utilizando estrutura de games FPS (jogos de tiro em primeira pessoa).

Ah, e aqui temos uma cena de corredor clássica da franquia, mas num flashback de Castle na guerra, que é digna de nota e não deixa nada a desejar frente às anteriores. Por falar nisso, O Justiceiro toca em assuntos muito pertinentes para o momento em que o mundo vive, em especial os EUA. A série não é uma propaganda armamentista, não glamouriza a violência (há que se ter estômago forte para algumas cenas) e ainda discute a questão do porte de armas, mostrando os horrores que isso pode causar, embora utilize uma porta-voz inusitada à favor da 2ª emenda: Karen Page (que apesar de ser instrumental no começo, derrapa nessa parte).

Apesar de Castle gostar da ação e da adrenalina da guerra, ele evita ao máximo utilizar a força de forma desnecessária (e isso fica evidente nos primeiros capítulos ambientados no canteiro de obras). Além disso, a série faz duras críticas à política externa intervencionista e bélica dos EUA, bem como retrata de forma crua o que acontece com os veteranos que retornam ao país marcados física e psicologicamente pelos horrores que foram obrigados a cometer em nome da “América” livre.

Tudo isso é dosado no meio de uma trama completamente envolvente do primeiro ao último capítulo, graças a algumas reviravoltas que podem ser previsíveis, mas interessantes, como a de Billy Russo (Ben Barnes, Westworld) como um “vilão” complexo, bem construído e com motivações claras. Coloco vilão entre aspas, porque o drama não cria lados. Tanto Micro como Castle, Madani e o próprio Russo (e seus superiores) possuem notórias falhas de caráter e jamais são apresentados de forma unidimensional. A série mergulha fundo em questões psicológicas, como o estresse pós-traumático, a depressão da perda e até mesmo distúrbios mentais, estes últimos personificados no personagem Lewis (Daniel Webber, 11.22.63).

É graças à esta ótima construção dos personagens e de um roteiro coeso, direto e focado numa história com várias ramificações próximas que O Justiceiro se destaca das demais produções desse universo, que não raramente saem dos trilhos para cuidar de subtramas que não dão em lugar algum. Além disso, a ausência de elementos “sobrenaturais”, pelo menos pra mim, fez com que eu me importasse muito mais com o destino de cada personagem – até do vilão -, pois as ameaças são de fato reais e em vários momentos sentimos que existe perigo ali. Isso é fundamental para o fenômeno da identificação ser completo.

Tecnicamente, inclusive, a série é irrepreensível, sem apresentar efeitos visuais fora do tom e sem utilizar aqueles filtros de cores característicos das outras produções da franquia. As cenas de tiroteio e lutas são absurdamente bem elaboradas e jamais soam coreografadas. Frank Castle não é um mestre das artes marciais e não luta de forma exibicionista, conferindo mais realidade e crueldade às sequências de ação.

O Justiceiro não é uma série perfeita. Como disse, poderia muito bem ter menos episódios como Os Defensores e evitar utilizar de diálogos expositivos (característicos de derivados de HQs), mas no geral o drama acerta em tom e numa linguagem concisa que permeia toda a temporada. A jornada de Frank Castle não é feliz, devido à natureza do personagem, mas a trajetória tortuosa do “herói” é eficaz em todos os sentidos, extrapolando – e muito – as expectativas e dando aos fãs a adaptação que sempre mereciam, ainda mais depois daquele pavoroso filme com Thomas Jane.

Tendo ou não mais temporadas ou levando o herói para mais exemplares do universo Marvel, fato é que O Justiceiro foi uma bela, diferente e surpreendente série, capaz de trazer entretenimento de primeira e de discutir temas pungentes do mundo moderno, incluindo guerra, corrupção, intolerância e violência. Acho que vocês, como eu, vão gostar muito.

2 comments

  1. Maravilhosa, me prendeu demais mesmo. mano eu maratonei completa sem parar, nem com stranger things foi assim… Parabens Marvel/Netflix.

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