quinta-feira, março 28 2024

Eu gosto de vários elementos da primeira temporada de 3%, a primeira série original da Netflix no Brasil, embora sua execução tenha deixado a desejar em alguns aspectos que comentei em minha crítica. Sua premissa é rica e ambiciosa: num mundo dividido entre os que têm muito (o Maralto) e os que têm pouco (o Continente), periodicamente três por cento da população recebe a oportunidade de “mudar de vida” através de uma seleção chamada de O Processo, promovida pelos mais abastados. Controladores dos pouquíssimos recursos que sobraram de um mundo devastado, os habitantes do Maralto somente têm como resistência um pequeno, porém barulhento grupo de rebeldes, a Causa, que às vésperas do Processo 105 decide unir forças para acabar de vez com o regime dominante.

A 2ª temporada da série já começa indicando que veremos uma expansão do universo criado, agora que o foco não está mais em acompanhar um grupo de jovens que quer passar para o “lado de lá”, e a narrativa já tem início na ilha que viria a ser o Maralto décadas antes. Isso por si é sinal de que a Netflix abriu a carteira, pois a primeira e maior diferença percebida pelo espectador é um verdadeiro upgrade em diversos sentidos. Se antes 3% voava de econômica, podemos dizer que agora a série reclina na executiva.

Mas a melhora percebida não é apenas em qualidade técnica, como também criativa. O patente desnivelamento de tom nas atuações presente no primeiro ano praticamente se extinguiu aqui, e seus talentosos intérpretes vivenciam seus personagens com maior autenticidade. Temos aqui Bianca Comparato muito mais confortável e segura na pele de Michele, Rodolfo Valente extremamente convincente nas motivações de Rafael e Vaneza Oliveira dominando cada quadro em que protagoniza.

Apesar de se apoiar em diálogos expositivos aqui e ali, o texto está muito mais fluido e sempre caminhando pra frente graças à direção que ficou bem mais consistente. Ambientada sete dias antes do início do Processo 105 e retratando as várias movimentações de peças num complicado tabuleiro de xadrez, a narrativa ficou ágil e repleta de reviravoltas interessantíssimas e sempre coerentes com a construção de seus personagens, que também agora estão mais delimitados. Os novos integrantes do elenco também fazem bonito, com destaque absoluto para a militar Marcela, interpretada pela ótima Laila Garin.

O design de produção, que já era rico (e fazia milagres na 1ª temporada com um orçamento claramente menor), aqui está digno de concorrer em grandes premiações, notadamente quando retrata os avanços tecnológicos do Maralto e sua ambientação orgânica e que sabiamente usa a arquitetura do parque Inhotim para criar contraste com a poluição e a destruição vista no Continente.

Todas essas melhorias estão à serviço de uma história que lida com a luta entre forças opostas que acabaram recorrendo ao extremismo, num comentário social muito pertinente com que o mundo e o Brasil vivem hoje em dia. Aliás, o talento dos roteiristas fica evidente quando a série evita tomar um posicionamento puramente maniqueísta, explicitando as virtudes e defeitos de cada um dos lados postos em tela e despertando a empatia do público pelos diversos personagens independente de qual grupo eles pertencem.

3% cresceu exponencialmente em todos os aspectos, embora poderia ser beneficiada por episódios mais curtos e concisos, pois existem algumas tramas paralelas sobrando, como o vai-não-vai entre o Fernando (do ótimo Michel Gomes) e Glória (de Cnthia Senek).

Felizmente na 2ª temporada as virtudes superaram os problemas, que passaram a ser pontuais, e a série finalmente mostrou do que é capaz.

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