quinta-feira, abril 18 2024

Há 22 anos as visionárias irmãs Wachowski conceberam o que seria um mundo em que a humanidade estivesse dormente e aprisionada em um simulacro feito para servir a interesses dos mais poderosos, na aventura tech/filosófica Matrix. Em 2021, Matrix Resurrections exibe uma realidade não tão distante daquela preconizada pelas realizadoras, quando surge em tela um elevador cheio de pessoas com a atenção travada em seus respectivos smartphones – algumas alegres, outras tristes, outras simplesmente impassíveis e inertes ao mundo real -, o que não deixa de ser curioso, embora obviamente não tenha sido esta a previsão original (ou seria?).

Agora, Lana Wachowski (Sense8) reabre a discussão nesta terceira continuação do clássico que revolucionou os cinemas, e o faz de uma forma inusitada, bastante divertida (!), às vezes atrapalhada e, de certa forma, até mesmo experimental, revigorando a franquia para acompanhar a evolução tecnológica da qual fez parte, enquanto o mundo discute realidades virtuais, metaversos e tokens não-fungíveis. Afinal, a pergunta permanece: o que é real?

Matrix Resurrections, contudo, jamais se torna refém de seu original, como várias continuações são (inclusive as antecessoras), mas utiliza a premissa única e difícil de ser novamente emulada do longa de 1999 para sublinhar temas novos e relevantes, ainda que o faça de forma bastante idealista e, sob um olhar mais pessimista, ingênuo ou até infantil.

Matrix Resurrections

[A partir daqui o texto traz detalhes da trama de Matrix Resurrections, indispensáveis para a discussão. Reviravoltas e spoilers serão evitados]

É aí que reencontramos Thomas Anderson (Keanu Reeves) num contexto surpreendente, porém perfeitamente crível e coeso num mundo criado por máquinas, como um programador que há anos criou uma das maiores franquias de jogos imersivos do planeta, a Trilogia Matrix. Como arquiteto deste mundo que lhe rendeu muitos prêmios e reconhecimento, “Tom” (vamos chamá-lo assim por ora) tem uma vida exitosa em termos materiais, mas vive às sombras de sua obra e de seu talento numa rotina interminável e sem propósito, sendo constantemente incomodado por seu sócio Smith (Jonathan Groff, maravilhoso) que o pressiona a lançar Matrix 4, algo que seria feito com ou sem ele à mando da empresa dona do conglomerado em que trabalha, a Warner Bros (uou!).

Era inevitável, diria um velho conhecido nosso, já que “histórias são sempre recontadas“, notadamente agora que “Hollywood perdeu totalmente a capacidade de ser original novamente“, como o próprio filme não cansa de destacar, num excesso metalinguístico desnecessário, como se fosse uma espécie de justificativa ou, até mesmo, “pedido de desculpas” da diretora e roteirista pela existência desta nova iteração.

Felizmente, todo este zelo não é necessário, pois Matrix Resurrections utiliza do ponto de partida acima para contar uma história que destaca muito mais a busca pelo amor do que a jornada clássica do heroi vista em Reloaded e Revolutions, mesmo sendo uma continuação direta destes, com enorme ênfase para o novo papel de Trinity (Carrie-Anne Moss, que só melhora como atriz).

Reconstruídos e mantidos no mundo real e na nova e atualizada versão da Matrix, Neo e Trinity estão literal e metaforicamente enclausurados em suas respectivas “realidades”, próximos (mas não tanto), o que garante uma necessária estabilidade para as máquinas na coleta de energia humana após a escassez causada pelo cerco a Zion, conforme o Analista (Neil Patrick Harris) descobriu. Mas é graças a uma simulação dentro da simulação programada pelo próprio Neo em seu jogo, que Bug (Jessica Henwick, fantástica) e (uma versão) de Morpheus (Yahya Abdul-Mateen II, estupendo) o resgatam de sua passividade.

Há, assim, incontáveis subtramas e leituras que podem ser extraídas de Matrix Resurrections ao longo de várias revisões (que serão necessárias): das mais óbvias como o fato de que a Matrix agora prefere utilizar bots a vírus para controlar os “usuários” e mantê-los inquietos, mas dormentes (numa clara alusão ao impacto negativo das redes sociais no planeta) e que estamos condicionados a uma vida na dicotomia medo/desejo, até a reinvenção (ainda que sem qualquer viés revolucionário) por meio da repetição levemente alterada de antigos padrões (o que também conversa com a própria franquia, num exercício mais interessante da metalinguagem).

Matrix Resurrections

Novamente inevitável, porém, que numa trama tão carregada de elementos objetivos, subjetivos e auto-referenciais em pouco tempo de projeção, o roteiro acabe sendo demasiadamente expositivo e sua execução trôpega (especialmente no segundo ato), denotando uma elevada dose auto-indulgência de Lana, provavelmente intensificada com o desenvolvimento de Sense8, ponto que certamente dividirá o seu já amadurecido público.

Matrix Resurrections consegue, contudo, recuperar-se em seu terço final, compensando ainda os deslizes com visuais deslumbrantes e sequências de ação grandiosas, mas não memoráveis (com direito a uma releitura reducionista do efeito bullet time, já que não é possível recriá-lo), encerrando-se como um exemplar que, embora inesperado, simbolize a transformação que sua realizadora (e a sociedade como um todo) vivenciou desde que o ensaio original de mais de duas décadas atrás estreou, levando a saga para novos rumos ou, quem sabe, estabelecendo seu novo desfecho (o que é perfeitamente possível e, inclusive, preferiria que fosse assim).

Eu vejo esta versão, assim, mais como um epílogo para contar o que aconteceu com o mundo após Neo ter resetado a Matrix ao fim melancólico de Revolutions, evocando um senso de esperança inexistente naquela época pós-11 de setembro. É uma carta de Lana Wachowski aos fãs dizendo que, sim, ainda é possível ao menos sonhar.

Nota do Editor: Há uma cena adicional após os créditos de Matrix Resurrections, totalmente desnecessária e fora de contexto, apenas para dar uma última alfinetada em Hollywood. Não vale a pena ficar até o fim para assistí-la.