Série retorna sete anos após cancelamento num complexo emaranhado de tramas
A tarefa de Mitch Hurwitz em trazer de volta os personagens de Arrested Development após sete anos de seu cancelamento foi complicada do ponto de vista logístico e que resultou num esforço criativo que raramente temos a oportunidade de ver, especialmente quando hoje predominam na TV comédias “acessíveis” e óbvias. Arrested Development nunca foi óbvia em suas três temporadas exibidas na Fox e certamente não retornou com este objetivo. Além disso, Hurwitz aproveitou a complicação que seria reunir o elenco e transformou a quarta temporada num quebra-cabeças capaz de deixar até mesmo os maiores fãs da comédia confusos.
O Modelo Netflix
Disponibilizar todos os episódios de uma vez, para serem assistidos por maratonas ininterruptas (como fiz) ou aproveitados em pequenas doses, foi fundamental para impactar na forma e na estrutura narrativa utilizada. Para a Netflix os intervalos comerciais, audiência, cliffhangers e outros recursos necessários na TV tradicional não importam. Este modelo arrojado de negócio visa quebrar o paradigma estabelecido pela network television controlada e ditada pela Nielsen Ratings (o Ibope norte-americano) e Hurwitz (assim como Eli Roth fez com Hemlock Grove e David Fincher e Kevin Spacey em House of Cards) aproveitaram-se disso e o resultado está sendo “exibido” agora e ininterruptamente para um mundo de assinantes e à critério destes.
Maratona
Assistir aos 15 episódios de Arrested Development em uma “sentada” é uma experiência ao mesmo tempo prazerosa, interessante, cansativa e curiosa. Eu realmente recomendo que, quem puder, vá com calma. Apesar de construída de uma forma que, mesmo sem cliffhangers, você fica ansiosamente aguardando o próximo capítulo, o próprio criador do show recomendou pausas para podermos assimilar melhor o que vemos.
Metalinguagem
Falar da própria série, assim como Community recentemente fez com propriedade nas três primeiras temporadas comandadas por Dan Harmon, é uma marca registrada de Arrested Development. Com a liberdade criativa dada pela Netflix, a metalinguagem tomou proporções inimagináveis. Isso pode ser visto desde a nova sequência de abertura que claramente menciona o cancelamento, como também nos diálogos soltos ao longo dos episódios que enaltecem as “Internet Companies” sobre as tradicionais e até mesmo na forma com que os diversos flashbacks e flashforwards foram dispostos, simulando o sistema de retroceder e avançar do próprio player do serviço de streaming. As piadas, bordões e todas as referências às temporadas anteriores estavam presentes, mas sempre com um twist e, na maior parte das vezes, bastante sutis. Note, por exemplo, quando Michael está prestes a entrar no táxi em Phoenix e queima a mão na maçaneta de ferro em alusão ao fritador que George Sr. lançou décadas antes, fora menções mais óbvias – e não menos elegantemente construídas – como o acrônimo da igreja de Ann, (HER) que culminou nesta grandiosa e inesperada piada.
Estrutura Narrativa
Entender a estrutura desta temporada leva alguns episódios, causando estranhamento nos primeiros capítulos quando referências a acontecimentos jamais vistos eram feitas como algo intrínseco e orgânico. Mas logo descobrimos que a linha temporal da série começa com uma reunião da família num galpão da capitania dos portos, logo após Lucille Bluth ter propositalmente afundado o Queen Mary (mais uma vez, numa alusão à série ter “afundado” também), seguindo, a partir daí, com a jornada individual que cada membro dos Bluth e agregados seguiu no que eles chamaram de “território obscuro”, ou seja, nos anos em que a comédia ficou fora do ar.
Porém, rapidamente vemos que os acontecimentos isolados com Michael, George Michael, GOB, Lindsay, Tobias, George Sr., Lucille, Buster e Maeby estavam interligados num emaranhado complexo de tramas e subtramas paralelas, simultâneas e totalmente interligadas entre si, exigindo um esforço grande do espectador, mesmo aquele acostumado com as idas e vindas de narrativas compostas de séries como LOST, Fringe e Breaking Bad, por exemplo. Além dos já mencionados flashbacks e flashforwards, a história foi contada com múltiplos pontos de vista de um mesmo acontecimento – especialmente o feriado Cinco de Cuatro e os três eventos no centro de convenção, tornando este também um exercício constante de memória (e paciência).
A temporada
Invariavelmente presente em todos os episódios como o fio condutor estava Michael Bluth na trama mais proeminente (e talvez a mais ligada com a história externa da série), já que seu objetivo era o de conseguir autorização de todos os membros de sua família para um filme a ser produzido por Ron Howard e Brian Grazer (o primeiro narrador da série e ambos executivos da Imagine Entertainment, a responsável por colocá-la no ar) reproduzindo o mesmo esforço que seu intérprete Jason Bateman teve fora das telas para ajudar a organizar a temporada e o tão esperado filme (que, conforme disse Maeby, pode não acontecer da forma que esperamos). E ainda que a história funcione sem qualquer conhecimento prévio do espectador do que aconteceu nos “bastidores” da produção (o que, em regra, é o certo), ela adquire uma profundidade muito maior quando sabemos o que de fato ocorreu. E essa pequena indulgência que a série se permite denota uma espécie de consideração e respeito com aqueles que, assim como Bateman, nunca perderam as esperanças no retorno de Arrested.
Talvez a timeline mais complicada foi a de George Sr., já que, lançada nos primeiros e nebulosos episódios, tinha em si uma trama política que nem o próprio entendia, com a construção do tão mencionado “muro” – somente sugestionada pelo seu rival Stan Sitwell. Tudo ficou ainda mais complexo com a adição do irmão gêmeo de George, Oscar Bluth, e os diversos “vai e vem” de e para a imaginária fronteira dos EUA e México que Buster desenhou em seu falho exercício de cartografia. Além disso, com Lucille detida em três momentos distintos (em casa antes do julgamento, na prisão de luxo e na rehab de Lucille), foi ainda mais difícil acompanhar o que se passava, onde e como. Mas “montar” o quebra-cabeças foi parte da diversão.
Enquanto isso GOB, apesar de contribuir e interferir aqui e ali, seguiu numa trajetória paralela de pseudo auto-conhecimento, protagonizando as piadas mais ácidas e elaboradas da temporada, em especial às várias alfinetadas evangélicas – chegando ao ponto de, ao se referir a uma figura de Jesus, dizer “pensei que fosse um sujeito de verdade“. Ainda, realizando um estudo de personagem preciso quando o mostrou tentando ser desesperadamente parte de uma entourage, Hurwitz construiu a recorrente e brilhante referência à abertura da série Entourage com o bar “and Jeremy Piven“.
Protagonizando episódios divertidos e peculiares, Lindsay e Tobias Fünke também passaram por transformações no período off the air para, então, retornarem com força total numa sequência divertida e atrapalhada de desventuras que culminaram na diversidade e loucura que foi o feriado Cinco de Cuatro. Aliás, todas as brincadeiras com “licenciamento” do filme Fantastic Four revela, ainda que em tom de brincadeira, a dificuldade que é viabilizar a manifestação artística com tanta burocracia e direitos autorais em Hollywood.
Já George Michael e Maeby, por sua vez, ganharam histórias que serviram como uma espécie de “fechamento” da temporada, amarrando as pontas que estavam soltas ao longo dos capítulos. Os roteiristas aqui pegaram a latente “paixonite” do primo esquisito com a já não tão novinha Maeby e a potencializaram com o enorme mal entendido envolvendo um aplicativo que tinha a promessa de resolver os problemas de privacidade do mundo e – em mais uma bela referência metalinguística – pirataria de conteúdo digital, quando na verdade se tratava de um dos vários softwares musicais já disponíveis para celular que imitava um bloco acústico (daí o nome Fakeblock).
A temporada também não teria sido grandiosa sem os diversos retornos, cameos e participações especiais que conferiam um brilho ainda mais distinto a toda essa algazarra televisiva. De John Slattery a Dan Harmon, de Isla Fischer a Liza Minelli, passando por Kristen Wiig e Seth Rogen, foi notório em tela o esforço conjunto e criativo. Fechando a história da temporada e ampliando as possibilidades novamente para um futuro incerto (Filme? Série? Temporada estendida?), Buster protagonizou apenas um capítulo que foi decisivo para o “gancho” final – o que aconteceu com Lucille 2? – e que despertou o interesse de altos e já conhecidos executivos da Imagine Entertainment.
Arrested Development retornou digna de todos os aplausos, restabelecendo-se como a melhor comédia da TV (é TV?) ou da Internet ou, melhor, da atualidade. É claro que há muito mais pra ser esmiuçado, discutido e pormenorizado, mas isso será objeto de outros encontros nossos e em outros formatos. Uma coisa é certa: foi muito bom ter os Bluth de volta!