quinta-feira, abril 25 2024

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Her (Ela) conta a história de Theodore, um sujeito qualquer de óculos e bigode que acaba se apaixonando por um Sistema Operacional inteligente  (tipo uma versão anabolizada da Siri, assim, mas mudando o nome pra Samantha). Conforme a relação dos dois vai crescendo, novas dificuldades surgem, novos tabus precisam ser quebrados e novos elogios precisam ser tecidos ao talento e à sensibilidade de Spike Jonze, que cria uma inesquecível obra sobre se apaixonar.

Her talvez seja um dos maiores libelos cinematográficos do amor livre e desprendido das convenções que conhecemos hoje. Tudo bem, é sobre um cara que se apaixona por uma máquina – a história de todos os usuários da Apple, basicamente -, mas Spike Jonze enxerga a questão como uma história de amor, sem dificultar a identificação com o tema. Em nenhum momento ele julga ou desloca Theodore, colocando-o à margem das pessoas “normais” – e, mais do que cativar com a história desse casal, Her acaba provocando reflexões sobre o amor, o universo e tudo mais (ok, mais sobre o amor).

Isso porque o filme jamais cede à estranheza de sua trama. Quando encontramos Theodore, ele é um sujeito como qualquer outro, trabalhando, se relacionando com pessoas, jogando videogame e tocando a vida, embora claramente ainda esteja na ressaca de um relacionamento que terminou e não foi superado (e que a película ilustra em flashbacks banhados de luz, onde Theodore e Catherine surgem felizes em planos fechados para realçar a intimidade). Assim, quando Spike Jonze enquadra o protagonista da cintura pra cima, ocupando apenas metade do quadro, percebemos que a opressão da cidade no resto da tela representa todo o peso que ele precisa carregar enquanto tenta seguir a vida mesmo preso ao passado (até mesmo o software, ao perguntar se ele é uma pessoa social, ouve uma resposta dizendo que “Não tenho sido muito social ultimamente“).

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E é incrível que, mesmo ligeiramente melancólico, Her jamais soe parado ou arrastado (ou mesmo triste). Conforme vamos conhecendo aquela figura sensível, inteligente e gentil, vamos nos envolvendo mais com a história – e, para isso, são essenciais as cenas que mostram Theodore em seu cotidiano, acompanhando ele no trabalho ou enquanto joga uma máquina que é uma espécie de Kinect elevado à décima potência (e que proporciona diversos momentos de humor espontâneo graças ao bonequinho politicamente incorreto). Logo somos cativados pelo protagonista, e a aparição de Samantha, longe de ser um artifício do roteiro  tipo “ok, a história precisa andar, pé na tábua“, surge como uma voz completando um vazio na vida de Theodore, um vazio que havia sido mostrado através de diversas cenas e não apenas explicado por alguma personagem. Ao investir em uma abordagem menos explícita (e, por isso, mais difícil, sem se amparar apenas na expressão verbal para informar algo), a produção recompensa seu público com um envolvimento maior na história.

O relacionamento de Theodore com Samantha, aliás, é extremamente complexo, e Her constroi ele com muito cuidado e dedicação. Inicialmente estranhos (reparem como Theodore hesita um pouco ao deixá-la olhar o disco rígido, como se fosse algo pessoal demais), eles logo adquirem uma cumplicidade: conversam sobre as cartas escritas no trabalho, sobre a rotina, jogam videogame juntos, falam sobre a agenda, e por aí vai. É uma relação que logo fica brincalhona (a forma como Samantha acorda o sujeito é um ótimo exemplo disso) e divertida (Theodore saindo com uma câmera no bolso da camisa – que, não por acaso, fica na frente do coração), investindo tempo para mostrar como os dois se gostam, como a conversa entre ambos é fácil e como esse casal, que à primeira vista pode soar estranho, acaba se complementando. E, conforme essa construção vai tornando tudo cada vez mais natural, a atração entre Theodore e Samantha cresce, resultando no momento onde se “beijam” e a relação é consumada – e onde Spike Jonze escurece a tela lentamente antes da coisa acontecer, fazendo com que Theodore também apareça para o público só como voz (o que ilustra o quanto os dois se completam, se tornaram um só, em uma cena tão brilhantemente construída que dá vontade de puxar um cobertor por cima da sala de cinema e ficar ali para sempre).

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Importante salientar que a coisa toda é cativante porque, assim como Theodore, Samantha também é uma personagem tridimensional. A curiosidade dela, a forma como busca entender as coisas, a maneira como vê o mundo, a capacidade de ser criativa e engraçada (“Estava lendo colunas de conselhos amorosos. Quero ser complicada como essa gente“), e, principalmente, a consciência que tem do que é e do que não é (por exemplo, muitas vezes ela não sabe descrever sentimentos porque não os conhece ou fica frustrada por saber que jamais terá algumas experiências) a tornam cada vez mais interessante, e a presença (“presença”) dela em cena jamais é monótona. Além disso, Her não se contenta com o básico e se preocupa em desenvolver a situação, colocando na jogada pessoas que querem ajudar a levar esse amor para o mundo físico ( e o que Samantha vê como oportunidade, Theodore vê com estranheza: não é só uma voz por quem ele se apaixonou, mas uma criatura completa) ou trazendo à tona o fato de ela ser um sistema mais elaborado, podendo conversar com milhares de outros SOs enquanto fala com Theodore (mais um conflito: o que para ele é algo digno de ciúmes, para ela é corriqueiro. O amor que um possui pelo outro é diferente). Dessa forma, a relação entre os dois encontra seus próprios obstáculos, que, claro, são diferentes dos problemas de relacionamentos tradicionais, mas acabam sendo tão importantes quanto.

Spike Jonze filma toda essa história com uma fotografia dessaturada, embora dê bastante destaque às cores quentes (principalmente a luz do sol e o vermelho da direção de arte), o que realça ainda mais a ideia de uma paixão surgindo em um mundo menos colorido (lembrem-se que vemos o mundo de Her pelos olhos de Theodore). A câmera segue o bigodudo com enquadramentos e movimentos de câmera elegantes, sem nenhum recurso de edição que possa soar minimamente artificial (afinal, é uma história de amor, nada mais natural), e é essa câmera que nos diz muito: comentei acima que Theodore aparecia apenas em metade do quadro, com a cidade opressiva pesando sobre ele; entretanto, após iniciar a relação com Samantha, vemos o sujeito novamente caminhando na rua – só que agora ocupando todo o quadro, como se a vida que começara a levar com ela fosse o suficiente para preencher tudo. Além disso, a direção de arte – marota ao tornar a ficção científica pontual, com elementos arredondados e modernos mas sem gritar “quando decolaremos para Marte?” – também faz das suas, vestindo Theodore de vermelho quando está sozinho (ele tem todo aquele amor contido) ou com a Samantha (quando eles se bastam) e passando esse vermelho para elementos do cenário (quadros, decorações, mesas, o “mundo real”) quando há algo se colocando entre os dois. E, além de uma trilha minimalista, sensível e por vezes melancólica, Her tem seu ápice musical em The Moon Song, canção composta por Theodore e Samantha e que mostra a intimidade de duas pessoas que conseguem criar uma obra de arte entre si.

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Mas é impossível falar da produção sem comentar suas atuações. Contido e sensível como Theodore, Joaquin Phoenix mais uma vez comprova seu talento ao construir um sujeito cativante, de risada fácil e cuja felicidade pelas pequenas coisas (como ir à praia com a amada) é demonstrada sem exageros, assim como a melancolia (uma leve mudança na postura do ator indica o estado de ânimo do protagonista). A naturalidade dos gestos de Theodore (arrumar os óculos, por exemplo) leva a personagem para mais perto do público, criando uma empatia cada vez maior graças ao carisma de Phoenix. Já Amy Adams transmite com segurança o carinho e até a vulnerabilidade (em determinado momento) de Amy (e a química dela com o protagonista só reforça a amizade dos dois, como na cena em que estão jogando), enquanto Chris Pratt surge como a escolha perfeita para alguém livre de preconceitos e que aceita Samantha no seu círculo de contatos normalmente. E, claro, Scarlett Johansson usa apenas a voz para criar uma Samantha interessante, repleta de risadas gostosas e cujas inflexões fogem da monotonia (que é uma abordagem meio comum em personagens robóticos), transmitindo alegria, felicidade, ciúme ou tensão apenas pelo tom que usa para pronunciar os diálogos.

Com tudo isso, Her se torna uma produção diferenciada. Um filme agridoce, muitas vezes divertido (“Não acredito que estou tendo esta conversa com o meu computador!“) e muitas vezes melancólico (a cena final, onde Theodore e Amy, após serem abandonados por seus romances/amigos eletrônicos, sobem no topo do prédio para olhar o mundo real), o que faz dele uma experiência envolvente. A maneira como aborda sem julgamentos uma relação aparentemente absurda levanta diversas questões sobre a forma como encaramos os relacionamentos – algo que talvez encontre definição em um dos melhores diálogos do filme, quando Amy diz “se apaixonar é uma forma socialmente aceita de ser louco“. Tratamos o amor como algo determinado por certas diretrizes e regras, mas Her nos obriga a questionar o que realmente é amor; o funcionamento dele, se possui limites, se o objeto de tal sentimento precisa necessariamente ser uma pessoa ou se, por sermos eternamente animais soltos no mundo, nossa capacidade de amar pode ser direcionada à qualquer coisa que nos dê um pouco de conforto e carinho em troca. E mesmo que, por exemplo, uma paixão por um Sistema Operacional possa parecer fruto de uma necessidade imediata, isso ainda não é amor? Ou seria o amor, em geral, fruto de uma necessidade? E, por mais estranho, bizarro ou desconcertante que pareça, será que não é melhor abraçarmos sem medo qualquer forma de amor que nos faça felizes nesta única vida que temos?

5star

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