quinta-feira, abril 25 2024

Sabemos que a imaginação de Hollywood é equivalente à de uma repartição pública de ressaca em uma segunda-feira de calor senegalesco. Entretanto, ao invés de tentar refazer coisas que deram muito certo, frequentemente rasgando qualquer qualidade que o filme original tinha (abraço, Total Recall), a indústria estadunidense poderia reaproveitar ótimas ideias que tiveram execução porca, dando assim uma nova oportunidade a grandes histórias que merecem ser contadas. Por exemplo:

300 (idem, Zack Snyder, 2006)

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Qual é a moral?
Xerxes, rei da Pérsia e uma versão medieval do garoto dono da bola que exige que todos passem para ele ou não tem jogo, chega até a Grécia e gentilmente pede a submissão dos gregos. Lêonidas, rei de Esparta e o rei da birra, diz que não e leva sua guarda de 300 soldados até o desfiladeiro das Termópilas, onde começa um quebra-pau descontrolado e filmado com todos os recursos que o programa de edição permitia.

O que deu errado?
300 é menos uma história e mais um amontoado de cenas que Snyder achou legal botar ali. É um desfile de soluções fáceis, eventos óbvios, diálogos tão explícitos que poderiam ser capa da Playboy, atuações sofríveis, coreografias monótonas, trilha completamente deslocada, exagero na utilização da câmera lenta, mise-en-scène derrotada, decupagem patética. Até a locução da narração em off consegue ser muito, mas muito ruim, fazendo com que a produção atinja novos níveis de insanidade. Salva-se de leve a fotografia, e olha que ela não conta porque foi simplesmente escaneada da graphic novel que o filme “adapta” (risos).

Mas por que outra chance?
Porque 300 de Esparta, a graphic novel que deu origem ao filme, é uma obra brilhante. Envolvente. Cinematográfica, acreditem ou não. Qualquer diretor com uma capacidade mínima de contar histórias tira dali um daqueles filmes épicos que fazem o espectador sair do cinema querendo comprar uma espada. Repleta de momentos inesquecíveis, personagens interessantes e uma cuidadosa construção de clímax (em certos momentos, dá para sentir o vento soprando nos desfiladeiros), a graphic novel merece uma versão cinematográfica à altura. É um crime deixar tal obra à mercê da paródia involuntária que Zack Snyder nos empurrou goela abaixo.

The League of Extraordinary Gentlemen (A Liga Extraordinária, Stephen Norrington, 2003)

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Qual é a moral?
É a Liga da Justiça intelectual. Para impedir a ameaça de um misterioso inimigo chamado de O Fantasma, o aventureiro Allan Quatermain (As Minas do Rei Salomão) reúne um grupo de personagens de clássicos britânicos, incluindo Mina Harker (Drácula, de Bram Stoker), Capitão Nemo (20.000 Léguas Submarinas), Dr. Jekyll/Mr. Hyde (O Médico e o Monstro), Rodney Skinner (O Homem-Invisível), Dorian Grey (O Retrato de Dorian Grey) e Tom Sawyer (As Aventuras de Tom Sawyer. Que não é um clássico britânico, mas está lá porque GO U.S.A!).

O que deu errado?
De forma bem concisa, podemos dizer que: tudo. The Legue of Extraordinary Gentleman é um tratado impecável sobre cair de cara no chão, fracassando miseravelmente desde os CGIs caricaturais até a maquiagem vilipendiosa, desde a trama inconsistente e metralhada de furos até os diálogos de biscoito da sorte, desde as cenas de ação murrinhas até o inexplicável final aberto. É tanta coisa reunida de forma tão errada que o filme pode ser encarado como um sinal da chegada do próximo anticristo.

Mas por que outra chance?
Porque é uma ideia brilhante, daquelas que gritam “clear!” e colocam o desfibrilador no peito da criatividade para salvar ela. Além disso, as graphic novels que o filme “adapta” são simplesmente geniais, tornando as personagens tridimensionais ao mantê-las de acordo com suas personalidades, crenças e motivações dos livros de onde saíram, além de construir uma trama repleta de reviravoltas, onde o mistério resulta em desfechos intensos e surpreendentes. Além disso, humor britânico.

Paycheck (O Pagamento, 2003, John Woo)

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Qual é a moral?
Um engenheiro aceita um contrato de 2 anos para trabalhar em um projeto onde, ao final, ele terá sua memória relacionada a esses 2 anos apagada para não revelar dados importantes (imaginem a maior ressaca de Tequila do mundo). Entretanto, ao tentar recolher o pagamento, ele descobre não só que renunciou ao dinheiro, mas também que os itens pessoais que havia guardado foram alterados. Como desgraça nunca vem sozinha, o FBI ainda resolve perseguir o sujeito por traição – provavelmente porque eles têm um orçamento anual dedicado à “traição” e precisam gastar a verba -, obrigando o tal engenheiro a resolver o mistério enquanto foge em câmera lenta dos agentes em seu encalço.

O que deu errado?
Na verdade, o filme começa bem, e as revelações são tão interessantes que o público até releva o fato do papel principal estar à mercê de Ben Affleck. Mas isso durante dez ou quinze minutos, quando 95% da trama é resolvida e o resto se resume a fugas em câmera lenta e pombas em câmera lenta e motos em câmera lenta (fosse rodado na velocidade normal, Paycheck teria cerca de 35 minutos de duração). Após a vigésima explosão e o quadragésimo bocejo, o espectador já começa a torcer que algum ataque terrorista exploda o mundo só para o filme acabar logo.

Mas por que outra chance?
Como comentado acima, a ideia de Paycheck é sensacional (embora bem diferente do conto que adapta). Investir mais no desenvolvimento da trama ao invés de, sabe, câmeras lentas pode resultar em uma história com um mistério intrigante, situações imprevisíveis, questionamentos filosóficos acerca da tecnologia, da inevitabilidade das coisas e de como se adaptar ao mundo moderno. Há um clássico de ficção científica aí, e não acho que devemos simplesmente deixá-lo de lado só porque John Woo precisa da sua dose de câmera lenta para não morrer sofrendo ataques de velocidade.

The Secret Life of Walter Mitty (A Vida Secreta de Walter Mitty, Ben Stiller, 2013)

THE SECRET LIFE OF WALTER MITTY

Qual é a Moral?
Walter Mitty é um sujeito pacato que leva uma vida pacata, trabalha em um emprego pacato, é enquadrado pela câmera de forma pacata e sonha em fazer coisas não pacatas. Mas quando ele perde o negativo da capa da última edição impressa da revista Life, precisa fazer um monte de coisa malucas que vão criar uma catarse dramática e mudar sua vida, enquanto os espectadores saem do cinema se sentindo bem antes de voltarem a suas vidas pacatas.

O que deu errado?
O diretor/ator Ben Stiller, claramente inspirado por e-mails motivacionais enviados por alguma tia que recém descobriu a internet, transformou a jornada de Walter Mitty em uma apresentação de PowerPoint, jogando na tela as mensagens edificantes sem construi-las. O resultado é algo completamente estéril, mais focado na trilha indie e nos filtros das lentes do que em contar uma história propriamente dita, e que faz questão de explicar e explicitar a jornada para o espectador saber o momento onde terá uma catarse dramática (que acaba sendo naquele ato do filme conhecido como “nunca”).

Mas por que outra chance?
A história de um sujeito diferente, subvalorizado e patologicamente apegado à zona de conforto saindo para viver aventuras e aproveitar a vida no melhor estilo Dead Poets Society tem um apelo muito forte – principalmente para a maioria das pessoas que, acorrentadas a uma mesa das nove às dezessete, sonham com liberdade e filtros de Instagram. Além disso, as possibilidades de mesclar sonho e realidade são inúmeras, e, se bem desenvolvidas e utilizadas, podem construir um daqueles filmes que acabam tendo uma conexão pessoal e entrando de gaiatos na lista de películas favoritas.

Your Highness? (Sua Alteza?, David Gordon Green, 2011)

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Qual é a moral?
Dois irmãos filhos de um rei, um extremamente corajoso e outro extremamente o resultado de tudo que um garoto de 10 anos acharia engraçado, precisam ir atrás do feiticeiro que roubou a esposa do primeiro. No caminho eles se deparam com obstáculos e criaturas oriundas da mitologia, como minotauros, bichos com três cabeças e a Natalie Portman de biquíni.

O que deu errado?
Your Highness? é, em suma, um filme escrito e dirigido por um garoto de 10 anos cheio de crack no cérebro: encharcada de piadas sexuais e escatológicas, porque apenas citar masturbação é engraçado, a película descarrila completamente, sendo incapaz de entregar uma cena minimamente engraçada e atingindo o ápice ao tentar fazer graça colocando um minotauro encoxando um sujeito (que surge ainda mais constrangedora do que o momento em Transformers: Dark of the Moon onde um robô peida um paraquedas). É pura demência fílmica, e o simples fato de que alguém está disposto a gastar milhões de dólares acreditando que ver um pênis é engraçado explica muito a falta de criatividade atual de Hollywood.

Mas por que outra chance?
Filmes realmente engraçados e nonsense não têm muita vez nos dias de hoje, e os que chegam ao mercado normalmente são cópias/continuações de Scary Movies. Your Highness? tem uma premissa diferente, um cenário diferente, possibilita novas abordagens e satirizar um gênero que já é por si próprio exagerado (imaginem a quantidade de piadas possíveis com os exércitos de CGI). Seria bom ver alguém usar a premissa para injetar algo novo no humor atual, alguém que seja mais influenciado por Monty Python and the Holy Grail do que, digamos, videocassetadas do YouTube.

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